Marie Sallé, A Terpsícore
Em 1734, o já famoso compositor Georg Friedrich Haendel (1685-1759) iniciava uma nova fase da sua vida enquanto criador e empresário do espetáculo na cidade que desde 1710 o acolheu e o aplaudiu, Londres. Terminada que estava a sua concessão no King’s Theatre, Haendel tinha sido convidado pelo empresário John Rich a desenvolver a sua atividade artística no seu novo teatro em Covent Garden. Uma das estratégias para atrair público para este novo teatro foi precisamente a inclusão de obras musicais para dança, convidando “estrelas” da época.
Assim, para além dos famosos cantores que Haendel contratava habitualmente para a interpretação das suas óperas (conhecidos pelo seu virtuosismo), em 1734, o compositor conciliou no mesmo espetáculo o famoso castrato Carestino e uma outra “estrela”, desta feita a famosa bailarina francesa que, pelo seu êxito na Academia Real de Dança e nos palcos franceses, iniciava então uma fulgurante carreira internacional: Marie Sallé (1707-1756). Tratou-se da reapresentação da opera seria “Il Pastor Fido” (já estreada em 1713) com um prólogo então acrescentado e intitulado Terpsicore. Nesta obra dedicada à musa da dança, Haendel compôs segundo o modelo da suite francesa, modelo esse também encontrado nas suas suites de cravo ou em obras de orquestra como Os Reais Fogos de Artifício ou Música Aquática. É ainda um bom exemplo da influência da obra do compositor francês Jean-Philippe Rameau (1683-1764) na produção cénica na época.
Este concerto apresenta, para além da suite de danças da Terpsicore de Haendel, outra obra que tinha já garantido sucesso a Sallé em Londres em 1725 - Les Caracteres de la danse de Jean-Féry Rebel (1666-1747). Esta obra é tão curta quanto eloquente na definição dos diferentes caracteres das danças da suite francesa que se apresentavam por toda a Europa de então. Gozou por isso de grande fama, tendo sido mesmo copiada pelo violinista alemão Johann Georg Pisendel, que acabou por compor ele mesmo uma obra intitulada Imitation des caracteres de la danse (1725-35), tal como outros compositores que escreveram também ao estilo dos caracteres, sendo esta definição muito importante na composição e interpretação da época.
A noção de caráter é então frequente na literatura e revela uma importância semelhante ao conceito de affetto do barroco italiano pela definição de tipologias, pela descrição de particularidades e pela consequente orientação das suas manifestações artísticas. Em 1688 Jean de la Bruyère (1645-1696) escrevia Les Caracteres ou les Moeurs de ce siècle, uma tradução da obra do filósofo clássico grego Teofrasto (séc. IV-III a. C.), mas também uma reflexão sobre os tipos humanos da sociedade cortesã em que vivia. Uma outra obra filosófica moral incontornável é a de René Descartes (1596-1650) Les Passions de l’Âme de 1649, onde o filósofo associava as paixões humanas a aspetos fisiológicos do corpo, aparentemente questionando, no final de vida, o dualismo espírito-corpo que tinha sempre defendido. Mas o mais interessante para o entendimento de caráter no meio expressivo da arte é talvez a maravilhosa obra de Charles Le Brun (1619-1690) Les expressions des passions de l’âme (1727) que, decorrente daquela obra de Descartes, define as expressões faciais que deveriam assistir à função retórica de oradores, atores, cantores ou bailarinos.
Não sabemos se Marie Sallé ou ainda a bailarina que estreou Les Caractères de la Danse, Françoise Prévost, tiveram contacto com tais obras; no entanto, com a sua arte também “escreviam” caraterizações que muito persuadiram o público de então. Diferentes autores defendem que esta obra não apenas expôs as características contrastantes da suite ao nível musical ou coreográfico mas também potenciou uma interpretação mais dramática ou teatral, recorrendo as intérpretes, muito possivelmente, a uma ampla expressão corporal que necessariamente extrapolava os cânones de movimento da belle danse. Uma possível prova desta exploração expressiva é o conteúdo da Parodie sur les Caractères de la danse, et des Amants de 1721, “uma narração constituída por pequenas ilustrações muito elucidativas à maneira dos Caractères de La Bruyère (Nye, 2008). Trata-se da publicação de uma contrafacta da melodia original de Rebel com texto de autor anónimo. Burgess (2018) defende que esta Parodie constitui um dos exemplos da evolução da dança do século XVIII, da clássica belle danse (mais “pura”) à dança representativa. Estando aqui representadas diferentes atitudes ou emoções face ao amor - do género masculino (courante, chaconne, sarabande, rigaudon, loure) e do feminino (menuet, bourrée, gigue, passepied, gavotte, musette) - esta paródia poderá transcrever o que a própria interpretação corporal de Prévost sugeriu; mas isso não se sabe. Sabe-se sim que a prática da paródia de obras era constante, estando o público, já na estreia de uma obra séria, expectante pela sua consequente paródia. A paródia era um veículo que promovia a visibilidade e a divulgação da própria obra original e permitia uma performance menos ortodoxa, mais descontraída, alternando partes dançadas e cantadas com a mesma música, com o claro intuito de entreter.
No campo da música instrumental as transcrições para tecla de obras orquestrais são algo semelhante às paródias das obras líricas e dramáticas. Tal como estas, também permitiam uma mais ampla circulação e divulgação do repertório, ao permitirem a execução de partituras complexas por um único intérprete, e assim, não só davam a conhecer as obras originais, como atraíam público para futuras apresentações. O processo contrário também era corrente: a orquestração de peças originalmente concebidas como solos de teclado. Ambas foram práticas muito comuns ao longo de todo o período barroco, e em vários países a ela se dedicaram grandes compositores. São famosas as transcrições para tecla realizadas por J. S. Bach de concertos de vários compositores como A. Vivaldi, B. Marcello e G. Ph. Telemann. Em Inglaterra G. F. Haendel integrou nos seus concertos e oratórias várias obras originalmente para tecla da sua autoria e de outros compositores - como G. Muffat - enquanto as suas árias e ouvertures foram transcritas para cravo, sobretudo por W. Babell. Em Portugal duas sinfonias de Carlos de Seixas sobrevivem apenas na versão para cravo. Em França destacam-se as transcrições para cravo de JH. D'Anglebert de várias páginas de J. B. Lully; aliás, as transcrições de excertos de obras de Lully contam-se às centenas, espalhadas por vários países europeus. Rameau é um exemplo ainda mais eloquente: muitas das suas peças para cravo foram por si orquestradas e surgem por vezes em mais do que uma ópera; e, no sentido inverso, peças orquestrais foram transcritas para cravo pelo compositor, como a suite completa de Les Indes Galantes. A própria forma de publicação da esmagadora maioria das obras francesas para o palco - óperas e bailados - conhecida como "partition réduite" e em que apenas se incluíam as partes principais dos solistas, a voz mais aguda da orquestra, e o baixo contínuo, eram um "convite" a esta prática de "redução" das partes orquestrais ao teclado, que facilitavam. Rebel, na edição da partitura "reduzida" do seu último e célebre bailado programático "Les Élements" menciona especificamente a possibilidade de executar a obra unicamente pelo cravo solo, uma opção seguramente aplicável aos seus restantes ballets.
Tendo trabalhado proximamente com intérpretes e compositores da época, Marie Sallé contribuiu definitivamente para a evolução da dança enquanto linguagem autónoma e capaz de estabelecer um diálogo maduro com as demais expressões artísticas. Para além disso, integrando maior dramatismo nas suas atuações, foi pioneira no desenvolvimento do ballet pantomímico que inspirou o reformador Jean-Georges Noverre (1727-1810) na conceção do novo género ballet d’action.
Catarina Costa e Silva e Fernando Miguel Jalôto
Catarina Costa e Silva (dança e declamação), Fernando Miguel Jalôto (cravo), Jean Denis Monory (aconselhamento artístico)
PROGRAMA
1. Terpsicore (HWV 8 b/c, 1743) de Georg Friedrich Haendel Haendel (excertos da suite) com textos biográficos de Marie Sallé a partir de Émile Dacier
Ouverture, Prelude, Gavotte, Sarabande, Gigue, Rigaudon, Menuet, Chaconne
2. Suite La Danse (Pièces de Clavecin avec une Méthode [...], Paris, 1724) de Jean-Philippe Rameau
Allemande, Courante, Gigue en rondeau, Musette en rondeau, Tambourin
3. Les Caracteres de la Danse (Paris, 1715) de Jean-Féry Rebel - com excertos da Parodie sur les Caractères de la Danse, et des Amants (Paris, 1721)
Prelude, Courante, Menuet, Bourée, Chaconne, Sarabande, Gigue, Rigaudon, Passepied, Gavotte, Sonate, Loure, Musette, Sonate
Tradução -Parodie sur les Caracteres de la danse et des amants
Nota biográfica
Ensemble Portingaloise
Ensemble votado ao estudo, reconstituição e divulgação da dança europeia dos séculos XV a XVIII, é constituído por artistas de formação versátil - dança, música, teatro, história da arte - que comungam do amplo interesse pelas artes do espetáculo na época moderna, orientando- se pela interpretação historicamente informada a partir da consulta assídua de documentos antigos. Por outro lado, desenvolve igualmente recriações ou mesmo criações originais contemporâneas a partir da reflexão sobre conteúdos históricos e estéticos das épocas renascentista e barroca.
Surge em 2015, apresentando-se em diferentes contextos: concertos com dança, concertos didáticos, congressos académicos. Apresentou-se nos concertos dançados: Os Planetas e as Sombras na Biblioteca do Palácio Nacional de Mafra e na Casa Allen (Primavera 2015) com a Orquestra Barroca da ESMAE; Salgan Bailando y Dançando con Instrumentos com a Capella Sanctae Crucis, com direção de Tiago Simas Freire; No Hay Que Temer Infortunios e Alegrem-se os Céus e a Terra; Baila! pel’ O Bando do Surunyo, com direção de Hugo Sanches (Outono 2015); Don Quixote com a Orquestra Barroca da ESMAE (Primavera 2016); Les Indes Galantes – suite orquestral de J. Ph. Rameau pela Orquestra Barroca Vigo 430 com direção de José Manuel Navarro (Maio de 2018); Auto do Labirinto com Il Dolcimelo (Outubro de 2018).
Em 2016 desenvolveu a criação original contemporânea Kinski (com apresentação no Teatro Helena Sá e Costa, Armazém 22 e nas III Jornadas de Estudo sobre o Convento dos Capuchos), obra selecionada para participar no ciclo Danses Abritées - Pépinière Baroque (dir. Béatrice Massin-Cie Fêtes Galantes) em Paris em Abril de 2018. O Ensemble participou ainda em episódio da série televisiva Madre Paula da RTP (2017).
Catarina Costa e Silva (Ensemble Portingaloise)
A sua atividade artística e pedagógica abrange as suas diferentes formações: Curso vocacional de dança - Ginasiano Escola de Dança; Licenciatura em História da Arte - FLUP; Licenciatura em Canto - ESMAE; MA Music-Theatre Studies - University of Sheffield; Curso de Encenação de Ópera - FCGulbenkian. Fez formação em Danças Antigas com diferentes mestres de renome internacional (Anne Marie Gardette, Béatrice Massin, Bruna Gondoni, Caroline Pingault, Catherine Turocy, Cecília Gracio Moura, Cecília Nocilli, Diana Campóo, Dorothée Wortelboer, Françoise Denieau, Jürgen Schrape, Marie Geneviève Massé, Maria José Ruiz, Maurizio Padovan e Ricardo Barros). Como intérprete (dança contemporânea, dança antiga, canto) ou assumindo a encenação/direção coreográfica, apresentou-se dentro e fora de Portugal (Alemanha, Brasil, Espanha, Finlândia, França, Inglaterra, Itália) em importantes eventos (Aerowaves - Londres, Guimarães 2012 – C. E. Cultura, Dias da Música - CCB, Tempestade e Galanterie - Queluz, Festival Mozart - Rovereto, Fringe - Utrecht, Encontro de Música Antiga de Loulé, Festival Sons Antigos ao Sul, Festival de Música de São Roque) com diversos agrupamentos nacionais e estrangeiros (Ensemble Clepsidra, Ensemble Elyma, Udite Amanti, Capella Sanctae Crucis, Il Dolcimelo, O Bando do Surunyo, Divino Sospiro, Ensemble Americantiga, Coro da Casa da Música).
Leciona Danças Antigas no Curso de Música Antiga da ESMAE – IPPorto desde 2008, assim como em diferentes instituições artísticas nacionais e estrangeiras, tais como a Semana de Música Antiga da Universidade Federal de Minas Gerais ou a European Union Baroque Orchestra (EUBO). Membro fundador do Grupo Ibero-Americano de Estudo de Danças Antigas e diretora artística do Festival Portingaloise (desde 2015). Council member (por Portugal) da European Association for Dance History. Doutoranda de Estudos Artísticos – Estudos Musicais e membro colaborador do Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos da Universidade de Coimbra.
Fernando Miguel Jalôto
Fernando Miguel Jalôto completou os diplomas de Bachelor e Master of Music em Cravo no Departamento de Música Antiga e Práticas Históricas de Interpretação do Conservatório Real da Haia (Países Baixos) na classe de Jacques Ogg. Frequentou Masterclasses com Gustav Leonhardt, Olivier Baumont, Ilton Wjuniski e Laurence Cummings. Estudou também órgão barroco e clavicórdio, e foi bolseiro do Centro Nacional de Cultura. Participou na Académie Baroque Européenne de Ambronay (França) e na Academia MUSICA de Neerpelt (Bélgica). É Mestre em Música pela Universidade de Aveiro e presentemente é doutorando em Ciências Musicais na Universidade Nova de Lisboa como Bolseiro da FCT. É fundador e director artístico do Ludovice Ensemble, um dos mais ativos e prestigiados grupos nacionais de Música Antiga. É membro da Orquestra Barroca Casa da Música e colabora com grupos especializados internacionais tais como Oltremontano, La Galanía, La Colombina, Capilla Flamenca, Divino Sospiro, etc. Apresentou se em inúmeros concertos em Portugal, Espanha, França, Bélgica, Holanda, Luxemburgo, Reino Unido, Irlanda, Noruega, Alemanha, Áustria, Polónia, Bulgária, Israel, China e Japão. Toca regularmente com a Orquestra Gulbenkian e outras orquestras nacionais e internacionais. Trabalhou com um grande número de maestros e solistas de renome internacional, mas destes gosta de destacar Enrico Onofri, Alfredo Bernardini, Laurence Cummings, Dirk Snellings, Wim Becu, Andreas Staier, Christophe Rousset, Andrew Parrott e Chiara Banchini como aqueles que mais o marcaram. Gravou para a Ramée/Outhere (cantatas francesas com o Ludovice Ensemble), Brilliant Classics (Integral das suites para cravo de Dieupart), Dynamic (concerto para cravo em sol menor de Carlos Seixas), Harmonia Mundi, Glossa Music, Parati, Anima & Corpo e Conditura Records, bem como para as rádios portuguesa, alemã e checa, e os canais televisivos Mezzo, Arte e RTP. Em 2019 apresentou recitais a solo no prestigiante Festival Oude Muziek de Utrecht (Holanda) e no FIMÉ - Festival Internacional de Música de Évora. Dirigiu o Ludovice Ensemble no Festival de Bruges (Bélgica) numa versão de Phaëton de Lully; cantatas de Bach em Alcobaça; e num concerto em Dublin, na Irlanda. Foi solista com a Orquestra Barroca da Casa da Música no concerto para cravo e orquestra da compositora Friederike Sophie Wilhelmine da Prússia, sob a direcção de Amandine Beyer.
Sábado, às 22h
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