Raízes do nosso Carnaval
Na época de Carnaval, assim que o sol desaparecia no horizonte, instalava-se um clima de tensão nas ruas da aldeia das Caixas. Os mais valentes, embora receosos, mantinham-se cá fora, em grupo, atentos, mas a maioria refugiava-se em casa e ali ficava a espreitar discretamente atrás das cortinas. Todos sabiam que não estavam totalmente seguros e a qualquer momento… o pior podia acontecer.
Por essa altura, Arménio Silva cumpria um ritual antigo, herdado do seu pai. Destapava com todo o cuidado uma caveira de burro, guardada desde o ano anterior, colocava-lhe uns olhos ensanguentados, adquiridos no talho, para a tornar mais realista, instalava-a sobre os ombros e cobria-se com um manto de serapilheira, dando assim vida à temível Burra Cachola, personagem que durante décadas povoou o imaginário dos moradores da aldeia e que, conta-se, ainda hoje aparece em algumas noites de Carnaval.
Depois de preparado saía para a rua movendo-se em silêncio, nas sombras, para não ser detectado. Quando encontrava um amigo mais incauto corria para ele batendo os enormes maxilares do animal gerando uma mistura de gritos de terror por parte do assustado e gargalhadas sonoras, tanto de Arménio como de todos os que, nas redondezas, se apercebiam de mais um feito da Burra.
Este era, normalmente, o cenário provocado à passagem do temido bicho, uma das muitas brincadeiras de Carnaval típicas desta zona rural do concelho. Todos sabiam que era um mascarado, mas mesmo assim nada atenuava o terror que sentiam quando viam ou, simplesmente, ouviam a figura. Apesar de saberem que tudo não passava de uma partida de Carnaval, o facto é que a temível máscara conseguia assustar, e também divertir, mesmo os mais cépticos.
A Burra Cachola foi apenas uma das muitas partidas que contribuíram para que as tradições do Carnaval se generalizassem e enraizassem de uma forma tão forte no município. Começavam, por norma, a partir de 22 de Janeiro, Dia de São Vicente, data que marca o início do Entrudo. Embora fossem praticadas por foliões de todas as idades, eram sobretudo os grupos de jovens que se juntavam durante a noite que punham em prática as “maldades” mais arrojadas.
O popular "badalo", que consistia em prender cordas às portas das casas com pedras ou sacos de areia, a troca de carroças e burros de umas aldeias para as outras ou a colocação de aiolas à porta da casa dos proprietários foram alguns dos feitos que ficaram na história. De dia apareciam os “rabinhos” nas costas, feitos em papel e pano, as carteiras e notas presas com "pita" e as moedas coladas no chão.
A par das tradicionais partidas, que os mais velhos já ouviam os pais relatar, e se perdem nos tempos, as noites eram animadas pelos populares bailes onde se reuniam grupos de mascarados que coloriam a vila. Eram vários os espaços que promoviam estes bailes, mas entre os mais conhecidos, e que serão para sempre recordados, destacam-se o salão João Mota, as garagens do Capítulo e do Covas, a "Praça", o Hotel Espadarte e as sociedades e colectividades, que ainda hoje mantêm viva a tradição.
Na freguesia rural, foi o baile das Caixas que sempre atraiu maior número de foliões. A música dos Blue Stars Melodias, Jacinto e os Seus Gaúchos e Lua Azul, os grupos mais procurados da altura, ecoava até às primeiras horas da manhã. Não eram propriamente "bailes de máscaras" mas eram bailes de mascarados, uma vez que a maioria dos grupos optava por fantasias de cara tapada para não serem reconhecidos. Tudo era usado para dar forma aos fatos: cobertores, lençóis, roupas antigas e mais tarde até a prata dos maços de cigarros e jornais.
Os travestis eram um disfarce clássico pois proporcionavam sempre momentos hilariantes. António Dias, 75 anos, lembra-se bem dos anos em que se mascarou de mulher. «Com um ou dois meses de antecedência começava a pensar na roupa, a treinar o andar e a voz», afirma. Também Artur Pereira, 65 anos, se fantasiou muitos carnavais com as roupas da esposa. «A malta de fora muitas vezes era enganada e pensava que estava a dançar com uma rapariga», conta.
Os bailes atraíam foliões dos concelhos vizinhos, que deliravam com o ambiente único que se vivia na vila. Para quem não ia mascarado e gostava de assistir à entrada e saída dos grupos e dar um pezinho de dança, os espaços de animação alugavam mesas, normalmente à volta da sala.
O Hotel Espadarte era procurado sobretudo pelas classes mais altas da sociedade, e ainda hoje é recordado como um local especial. «Os famosos bailes do Espadarte tinham um glamour que não se encontrava em mais lado nenhum», explica Fernanda Cagica, 50 anos, sesimbrense que cresceu com o Carnaval e hoje ainda se mantém intimamente ligada à festa, visto que é uma das mais procuradas costureiras de fatos e fantasias. «A tia Júlia Casaca, que tinha uns setenta e tal anos, ia tão bem mascarada para o hotel que não se conseguia perceber se era nova ou velha», recorda. «Fartava-se de dançar com os rapazes mais novos». José Júlio, 65 anos, também tem boas lembranças de quando aparecia no Espadarte com um grupo de amigos, que se destacava pelas fantasias criativas e bem trabalhadas. «Fazíamos furor onde entrávamos, mas no Espadarte éramos os senhores do baile». Quando revive aqueles tempos, José sente uma enorme saudade, principalmente do espírito de camaradagem e diversão.
Foi também no Hotel Espadarte que o fotógrafo sesimbrense Valdemar Capítulo, com apenas 20 anos, tirou as primeiras fotografias do Carnaval. «Revelava 12 imagens de cada vez e tinha de ir logo tentar vendê-las pois não sabia se aquelas pessoas lá iam estar no dia seguinte», explica. Valdemar percorreu, durante anos, os vários bailes e ruas para registar o ambiente e a folia característicos da vila, mas com o tempo começou a fixar-se no Largo José António Pereira, em frente ao Grémio, onde tinha melhores condições para fotografar. Naquela altura estava longe de imaginar que se ia tornar num hábito os grupos irem de propósito ao Largo para serem fotografados. Ao longo dos mais de 30 carnavais passaram pela sua objectiva milhares de mascarados, mas há um episódio que aconteceu numa das noites de maior azáfama, e que nunca mais vai esquecer. «A euforia era tanta que começavam a chamar por mim ainda ao longe, e uma vez saltaram tanto à minha volta que me partiram um dedo do pé», revela, sem ressentimentos.
Embora muita desta “alma” se tenha perdido ao longo dos anos, continua a ser possível sentir a essência do Carnaval de Sesimbra, sobretudo nas noites de sábado e segunda-feira, altura em que o corrupio de grupos de mascarados a entrar e a sair das colectividades, associações e bares da vila nos transportam para o Carnaval de outros tempos.